Artigo para debate e reflexão
Fidel, um exemplo para a esquerda latino-americana Por: Rodrigo Freire (*) |
O anúncio da renúncia de Fidel Castro à presidência do Conselho de Estado de Cuba aconteceu de uma forma absolutamente tranqüila. Ao contrário do que previam os mais ferozes opositores do regime cubano, Cuba continua seguindo, após esta renúncia, o seu caminho político com total normalidade, evidência irrefutável do apoio do povo cubano ao seu regime e ao seu líder. É evidente que estes mesmos opositores de Cuba não poderiam ficar calados. O presidente dos EUA, George Bush, eleito, em 2000, pelo voto indireto, com adesão minoritária entre os eleitores, lobista das grandes empresas petrolíferas ianques - dentre as quais, a da sua família -, que lhe apoiaram no violento ato imperialista de invasão ao Iraque, foi rápido: “a renúncia de Fidel vai conduzir Cuba à democracia”, sentenciou Bush. Infelizmente, não será ainda a partir de hoje que a democracia e os direitos humanos chegarão aos famigerados campos de concentração que os EUA mantêm na Baía de Guantánamo, em Cuba. Nestes campos de concentração, prisioneiros muçulmanos, julgados como “terroristas” em farsas processuais levadas a cabo pelos EUA, são submetidos a toda sorte de sevícias, num flagrante abuso aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Oxalá as próximas eleições presidenciais dos EUA varrerão da política externa daquele país o conceito de “guerra preventiva”, assumido por Bush, que também viola os seculares esforços de paz, segurança internacional e convivência pacífica entre as nações. Não é Bush que pode dar lições de democracia a ninguém, muito menos a Fidel que, ao contrário de Bush, se ausenta do poder gozando de amplo apoio entre os seus concidadãos. Se a História absolverá a Fidel, o exemplo que Bush legará para as próximas gerações seria patético, se não fosse trágico e cruel. No Brasil, e não por acaso, os conservadores periódicos Folha de S. Paulo e Veja não duvidaram de usar o qualificativo “ditador” para se referir ao ex-presidente Fidel Castro. Nem diários ultra conservadores - como o chileno El Mercúrio, que apoiou o regime de Pinochet - usaram o mesmo tratamento. Não vou cometer o equívoco de afirmar que Fidel representa um exemplo de democracia, tomando rapidamente por conceito de democracia o respeito aos direitos civis e políticos que estão enunciados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Entretanto, por curiosidade, decidi consultar, no seu próprio portal da internet, o tratamento dado pela mesma Folha de S. Paulo ao peruano Alberto Fujimori. Como é sabido, Fujimori liderou um autogolpe de Estado quando presidia o Peru, com o fim de implantar uma feroz empreitada reformista neoliberal no seu país, relegando à pobreza e ao desemprego grandes maiorias do seu povo. O resultado da consulta não me surpreendeu. Em matérias e editoriais recentes da Folha de S. Paulo, Fujimori aparece como o “ex-presidente peruano”. Por que, em nome do bom jornalismo, não tratar Fidel igualmente como “ex-presidente cubano”? Não tergiverso em julgar: pelo que Fidel representa para a luta de libertação do povo latino-americano, as elites que subjugam e relegam à miséria este mesmo povo, e os seus panfletos e porta-vozes, preferem tratá-lo como “ditador”. É por esse mesmo motivo, aliás, que a Folha e a Veja insistem em divulgar o falso boato de que o presidente Lula pleiteia uma nova reeleição em 2010, enquanto omitem que o presidente colombiano Álvaro Uribe, maior aliado dos EUA no nosso continente, já se movimenta junto à sua base parlamentar para conseguir para si um terceiro mandato consecutivo. Certamente, Cuba deverá vivenciar um processo de transição política ao longo dos próximos anos, trilhando o caminho que já era anunciado há tempos pelo próprio Fidel. Talvez com ainda mais segurança, me parece que qualquer intervenção estrangeira neste processo, que comprometesse a sua autodeterminação, seria fortemente rechaçada pelo povo cubano. E é justamente aí que reside a maior herança do regime instalado e até ontem liderado por Fidel Castro. Como socialista e democrata, custo a perceber o regime instalado por Fidel em Cuba como um regime “socialista”. Os traços estatistas e autoritários (portanto, antidemocráticos) que marcam este regime me parecem contraditórios com uma perspectiva socialista. Entendo socialismo como aquela sociedade onde a democracia é estendida da esfera política para a esfera econômica, social e cultural. Não há como esconder, e a esquerda latino-americana precisa enfrentar esta realidade com clareza: o regime implantado por Fidel em Cuba se baseou no partido único, na falta de liberdade de expressão e de imprensa, na pena de morte e, ao menos até o início dos anos 1980, na violação das liberdades religiosas, culturais e sexuais. Nada disso me parece coerente com o conteúdo libertário que está associado ao pensamento socialista, e é evidente que aqui considero que o leninismo, neste mesmo sentido, também representa uma deturpação histórica dos ideais do socialismo. Socialismo é a expressão da radicalização dos ideais laicos da Revolução Francesa, de Igualdade, Liberdade e Fraternidade (que modernamente chamamos de “Solidariedade”). Os liberais se apropriaram desses ideais, entendendo a liberdade como sinônimo de livre-mercado, e tomando a fraternidade como mera alegoria - afinal, o que caracteriza a sociedade de mercado liberal ou neoliberal é a competição hobbesiana, e nunca a solidariedade. Boa parte dos autodenominados “socialistas” do século XX, bebendo na fonte de Lênin, identificaram estes ideais como “burgueses” - cometendo uma injustiça histórica com a esquerda de princípios do século XIX -, e assumiram esta já anunciada feição estatista e autoritária. Por outro lado, e é bom repetir muito, desde que Fidel chegou ao poder, só se tem notícia de tortura em território de Cuba na base que os EUA mantêm em Guantánamo. Acredito, outrossim, que o governo de Fidel é claramente um regime nacional e popular, herdeiro dos grandes libertadores latino-americanos do século XIX, e é este o seu legado positivo. O regime de Fidel é um exemplo de heróica resistência nacional de um povo pobre ao imperialismo norte-americano. Frente ao enunciado da “América para os americanos” da doutrina Monroe, Fidel optou pelo sonho da “Pátria grande”, de Simon Bolívar. Apelando para a unidade continental, Fidel permanentemente praticou a solidariedade latino-americana, inclusive em se tratando do apoio a partidos da esquerda democrática, como o nosso Partido dos Trabalhadores. Durante todos estes anos, Cuba sobrevive firmemente ao bloqueio econômico imposto pelos EUA, cujos efeitos negativos se agravaram após o fim da URSS. Progressivamente, no decorrer destes mais de 15 anos que nos separam da derrocada soviética, Cuba foi retomando relações diplomáticas e econômicas com nações democráticas do mundo inteiro, inclusive o Brasil. Impassíveis, os EUA continuam punindo com seu arrogante bloqueio econômico a minúscula ilha que ousa sonhar com a Pátria Grande. Nestes quase 50 anos que Fidel se manteve no poder, nunca é demais recordar o papel que os “democráticos” EUA jogaram na América Latina: apoio operacional e financeiro a golpes de Estado e a ditadores sanguinários, com destaque à sua interferência direta no assassinato de um presidente latino-americano democraticamente eleito, Salvador Allende, morto em combate na defesa do seu mandato popular; formação ideológica e estratégica dos futuros militares golpistas latino-americanos nas suas “escolas de segurança”; financiamento de grupos para-militares de extrema-direita (na Nicarágua revolucionária, por exemplo); imposição da ideologia neoliberal em troca de ajuda financeira aos governos do continente, desprezando os altos custos sociais e desindustrializantes que estão associados a esta ideologia e; bem recentemente, o apoio à ditadura corrupta e neoliberal de Alberto Fujimori no Peru. Com seu exemplo, Fidel reaviva em nosotros da esquerda latino-americana a disposição de lutar contra o imperialismo dos EUA. A diferença é que nós, da esquerda democrática, decidimos lutar esta mesma luta de Fidel com outros meios, os mecanismos democráticos. Por fim, ao regime de Fidel está associado um forte componente popular e antioligárquico. Num dos seus primeiros atos, Fidel decretou a reforma agrária em Cuba, começando por parcelar o próprio latifúndio da sua família. Como todo bom latino-americano, Fidel sabia que o grande latifúndio se constitui na principal base do poder das oligarquias no nosso continente, e em Cuba não era diferente. Mesmo nos períodos mais duros do seu equivocado afã estatizante, Fidel preservou a pequena propriedade privada da terra, ao contrário do que haviam feito os soviéticos. Mas é na universalização às massas populares da educação e da saúde públicas de qualidade que Cuba se destaca. Quantos milionários de todo o mundo, amargando os mais diversos tipos de enfermidades, não se dirigiram a Cuba para tratar da sua saúde no sistema público daquele país? Dentre vários casos, o de maior apelo midiático foi o do jogador de futebol argentino Diego Maradona. É esta herança nacional e popular que me leva a acreditar que o povo cubano não vai abrir mão da sua autodeterminação no processo de sucessão de Fidel. Alternativas como a que é hoje vivenciada no Iraque seriam impensáveis, portanto, em Cuba. Isto, as elites do nosso continente vão ter que agüentar caladas, continuando a chamar Fidel de “ditador” enquanto ele recebe homenagens do povo cubano. O legado Fidel deve ser tomado, assim, como um exemplo positivo e negativo para a esquerda latino americana. O conteúdo estatista e autoritário do regime cubano é um exemplo negativo. As experiências totalitárias de direita e de esquerda no século XX, e a antipatia que provocam hoje na imensa maioria da população mundial, mostram que a democracia deve ser tomada como um valor universal, principalmente em se tratando de construções políticas de esquerda. No século XXI, qualquer projeto socialista tem que ser radicalmente democrático. O estatismo e a tentativa de planificação centralizada da economia já se mostraram, historicamente, geradores de deficiências, improdutividades, corrupção e injustiças que podem ser corrigidos por uma economia de mercado socialmente regulada. Se o socialismo, no século XXI, deve ser adversário do neoliberalismo, a experiência histórica do século XX já demonstrou que um projeto socialista não pode abrir mão da economia de mercado. Por outro lado, o que há de nacional e de popular na Revolução Cubana é um exemplo positivo, que deve ser seguido. Seguir não quer dizer copiar. Cada povo latino-americano, assim como o povo cubano o fez, deve ter preservado o seu direito de construir seu próprio projeto nacional, mesmo sem perder de vista o sonho da Pátria Grande, que nos fortalece frente ao imperialismo do Norte. As características populares do regime cubano - reforma agrária, educação e saúde públicas de qualidade - também são tarefas inconclusas em, quiçá, todos os países da América Latina. Não temo, portanto, em afirmar que Fidel já se perfila ao lado dos grandes heróis libertadores latino-americanos, como Simon Bolívar, José Marti, San Martín, Frei Caneca, Abreu e Lima, Che Guevara e Salvador Allende. Todos estes foram líderes políticos libertadores, nacionalistas e antiimperialistas, mas, nem por isso, democratas, com a exceção - é importante observar - de Allende, que se propunha a construir no Chile uma via própria ao socialismo, com “democracia, pluralismo y libertad”. Nem por isso, deixam de ser heróis, devendo ser julgados como homens de um tempo que, com os apelos democráticos do século XXI, já foi relegado à História. Hasta la vitoria siempre, comandante Fidel! Uma vida ainda mais longa para você, compañero Fidel Castro Ruz. |